Faz um tempo que penso em escrever sobre como é feita a manutenção em aviação “state-of-the-art” (modernos). Considere atualmente nesse grupo os Boeing 777 e os Airbus A330/340, os quais ficarão obsoletos assim que os Boeing 787 entrarem em operação.
Pois bem, eu gosto muito de trabalhar no B777, ele é um avião muito fácil para “consertar”, mesmo para quem não é um bom técnico, devido a automação dos sistemas, controlados por dois super computadores chamados CMC (Central Maintenance Computer).
Mas o que acontece quando ocorre um problema cuja natureza não pode ser definida por um desses dois computadores?
Vou usar um exemplo real, mas antes é preciso explicar como funciona a cabeça de um bom técnico (como eu..hahaha) de manutenção. E para não ficar muito complexo, vamos usar algumas analogias. Não troquem de canal, continuem lendo.
Quando ocorre um problema técnico durante um voo, geralmente este problema causa um sintoma no avião. Este sintoma é então “reportado” no livro de bordo pelo piloto. Quando o avião pousa, você como técnico tem que achar e corrigir a causa do sintoma reportado, através de uma técnica chamada “trouble shooting” (pesquisa de pane).
Mas qual a diferença entre o sintoma e a causa?
Um exemplo:
Digamos que o avião é sua casa e o piloto é seu pai. Então você chega de manhã em casa e seu pai fala:
_Eu acendi a luz, mas a sala ficou escura a noite toda <<<< Sintoma: a sala ficou escura.
_Mas pai, quando você acendeu o interruptor a luz acendeu? <<<< Trouble Shooting inicial, pesquisa de pane.
_Não, o interruptor se moveu pra cima, mas a luz não acendeu.
_hummm, pode ser que a lâmpada tenha queimado. <<<< causa mais provável.
Mas, porque você acredita que a lâmpada seja a causa mais provável?
Ora, por experiência acumulada, você sabe que as lâmpadas queimam muito mais do que os interruptores quebram e não é todo dia que falta luz na rua inteira certo?.
Este método de manutenção era muito usado antigamente, e apesar de não ser “trial and error”, não era muito eficiente para sistemas complexos e aumentavam os custos da empresa com trocas de componentes que nem sempre estavam defeituosos.
Então, para os sistemas complexos, os engenheiros das fábricas de aviões criaram um manual chamado FIM (Fault Isolation Manual – algo como manual para isolar um problema). É um dos melhores manuais de auxilio à manutenção e funciona mais ou menos assim (vamos voltar à sua casa):
1- Pai diz: Sala Escura <<< Sintoma 2- Filho vai no F.I.M. e procura pelo sintoma, aí acha: "Sala sem iluminação" A partir daí, o F.I.M. tem um formato em fluxograma, com perguntas e respostas que direcionam para uma solução, seguindo uma filosofia que chamamos de "path of influence", e no caso da sala do seu pai seria mais ou menos assim: (nota: esse esquema de fluxograma foi tirado de um manual real da Boeing, eu apenas adaptei os textos dentro dos blocos) [caption id="attachment_2180" align="alignnone" width="500" caption="Clique na imagem para ampliar"][/caption]
O F.I.M. é montado de tal maneira que até os problemas mais complexos se tornam simples (na teoria). O manual contempla algumas instruções iniciais, como os pré-requisitos para o sistema que está com defeito funcionar, uma descrição do defeito e em alguns casos, as causas mais prováveis e em seguida um ponto de partida.
Sei que vocês estão pensando: “ah, mas agora sei como é fácil ser mecânico, basta seguir a receita do FIM, pois já está escrito tudo o que tem que fazer!”.. não pensaram?
Para a nossa sorte não é assim tão simples, pois o FIM foi escrito por engenheiros, e nem sempre a maneira de pensar de alguém que está atrás de uma prancheta com o projeto do avião se encaixa na maneira real de como o avião pode ser consertado, isto é um fato.
Ainda seguindo o exemplo da luz da casa, seguindo o FIM, o primeiro passo que o engenheiro sugeriu foi o de verificar se havia 110VAC no bocal não foi?
Mas na vida real, pegar uma escada, se proteger com isolamento elétrico, requisitar um multímetro e ter mais uma pessoa acionando o interruptor enquanto você encosta os pinos do multímetro pra ver se tem energia no bocal pode não ser tao rápido ou econômico quanto já subir a escada com outra lampada e testar se ela acende não é? E estou fazendo analogia com uma lâmpada de casa, imagine escalar isso para um sistema de AFDS (auto flight director system)!
Invariavelmente, os manuais de F.I.M. carregam a filosofia do ponto de vista do engenheiro e como vimos, engenheiros sabem projetar coisas e não consertá-las…rs. Sendo assim, os mecânicos (e os pilotos) ainda têm uma longa vida profissional à frente.
No artigo de amanhã as coisas ficarão muito mais interessantes, vou revelar como essa filosofia de Fault Isolation evoluiu para o próximo nível e os computadores passaram a dar pitaco pro mecânico também. Será que sempre acertam?
Não percam a continuação 🙂