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BA9 e KL867, os “cinzeiros voadores”

Não, este post não é sobre lepr… quero dizer, fumantes em aviões. É que nos dois últimos anos, tivemos dois vulcões causando grandes transtornos à aviação pelo mundo. Primeiro foi aquele vulcão na Islândia com um nome “facílimo” de soletrar e pronunciar (hehehe… se você for islandês, é claro), o Eyjafjallajökull, que entrou em erupção em abril e maio de 2010 e praticamente parou o tráfego aéreo na Europa durante várias semanas (se o vento estivesse soprando em outra direção, seriam o Canadá e talvez a costa leste americana). Depois foi o Cordón Caulle, no Chile (embora a erupção tenha sido erroneamente atribuída na imprensa ao vizinho e mais vistoso vulcão Puyehue), que em junho de 2011 fez o mesmo aqui na América do Sul e, devido aos ventos, até na África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, com algumas recaídas nos meses seguintes que também causaram cancelamentos e transtornos nos aeroportos sul-americanos.

Muita gente presa sem poder viajar nessas ocasiões deve ter se perguntado, com raiva, por que uma mísera poeirinha no ar iria impedir um possante jato de voar, e se não seria algum pretexto para uma conspiração política ou militar. Bem, essa gente deveria em primeiro lugar ler os dois posts que o Lito fez sobre o assunto nas épocas das respectivas erupções, em abril de 2010 e junho de 2011. Mas embora tenha dado explicações técnicas abundantes e mostrado fotos impressionantes, o Lito não contou em detalhes um caso concreto do que acontece quando um avião encontra essa “poeirinha” literalmente dos infernos. Como vulcão não escolhe hora para entrar em erupção, e como apesar de o Brasil não ter vulcões ativos, nossos vizinhos andinos estão cheios deles, é bom saber o que acontece. Então, hoje vou contar para vocês o caso do voo 9 da British Airways, que em 24 de junho de 1982, quase 30 anos atrás, teve a infelicidade de entrar numa nuvem de cinzas vulcânicas e só não houve uma tragédia por muita sorte (e extrema perícia dos pilotos, também).

Naquela época, com aviões com menos autonomia de voo do que hoje, era comum voos muito longos serem um pinga-pinga de escalas. O voo BA9 era operado num Boeing 747-200 e ia de Londres (Heathrow) a Auckland, na Nova Zelândia, com escalas em Bombaim (hoje Mumbai) e Madras (hoje Chennai), Índia; Kuala Lumpur, Malásia; Perth e Melbourne, Austrália. No trecho entre Kuala Lumpur e Perth, estava com 263 pessoas a bordo (248 passageiros e 15 tripulantes). Era noite (20:40 no fuso horário local) e o avião sobrevoava o Oceano Índico entre a Indonésia e a Austrália – portanto, breu total lá fora. De repente, o breu foi quebrado por umas luzes estranhas no para-brisa do cockpit, que os tripulantes depois descreveram como “parecidas com fogo de Santelmo”. Não havia turbulência e o radar indicava céu limpo à frente, de modo que, sem saber o que era aquilo, mas também sem sentir nenhum perigo imediato, o comandante resolveu apenas ligar os sistemas de degelo do avião e os avisos luminosos de atar os cintos de segurança.

 

A rota do voo BA9
A rota do voo BA9. Assinalei a ilha de Java e a localização de Jakarta (JKT), onde foi feito o pouso de emergência.

 

Ele não sabia, mas as luzes vinham da descarga de eletricidade estática causada pelo atrito da cinza vulcânica da nuvem que ele atravessava com o vidro e a fuselagem do avião. A nuvem vinha de uma erupção do monte Galunggung, de 2168 metros de altitude, um dos muitos vulcões ativos da ilha indonésia de Java, que eles tinham sobrevoado pouco antes e estava naquele momento uns 300 km ao norte da posição do avião. Infelizmente, os ventos tinham levado a nuvem de cinzas exatamente na direção do avião. Também infelizmente, os silicatos que são os principais constituintes das cinzas vulcânicas (basicamente, micropartículas de vidro formadas quando a lava líquida é borrifada em aerossol na atmosfera pela erupção e as gotículas assim formadas se solidificam ao esfriarem rapidamente) não refletem ondas de rádio. Portanto, cinzas vulcânicas são invisíveis ao radar. E o fato de eles estarem voando à noite, é claro, não ajudou, embora o acidente não necessariamente pudesse ser evitado se fosse de dia: nuvens de cinzas vulcânicas nem sempre são escuras e muitas vezes podem ser indistinguíveis visualmente de uma nuvem comum de vapor de água.

 

Monte Galunggung, Indonésia
O monte Galunggung, na ilha indonésia de Java, em um dia de bom humor e uma noite de mau humor.

 

Enquanto isso, os passageiros notaram uma fumaça densa se formando na cabine. Naquela época, ainda era permitido fumar a bordo, de modo que inicialmente pensaram que era isso, mas depois a fumaça foi aumentando e o cheiro de enxofre não deixou dúvidas de que era algo diferente. Quem estava na janela viu luzes estranhas se projetando à frente dos motores, produzindo um efeito descrito como “estroboscópico”. Deve ter sido deveras assustador. Dois minutos depois do “fogo de Santelmo” no cockpit, o motor nº 4 teve uma falha do compressor e logo parou de funcionar. A tripulação fez os procedimentos de praxe, cortando o combustível e preparando os extintores de incêndio. Só que menos de um minuto depois, o motor nº 2 (portanto, na asa esquerda) também falhou. Num intervalo de poucos segundos, os motores 1 e 3 também falharam e o 747 ficou sem nenhuma potência no meio do oceano!

O comandante declarou uma emergência e entrou em contato com o controle de tráfego aéreo de Jakarta, a capital da Indonésia e o aeroporto mais próximo com capacidade para um 747. Mas o controle de tráfego não conseguiu localizar o avião em seu radar nem mesmo depois que o comandante botou o código de squawk de emergência 7700 no transponder. Eles iriam tentar chegar a Jakarta, mas seria difícil: o 747 tem capacidade de planar 15 km horizontais para cada 1000 metros verticais perdidos, dando a eles uma autonomia de apenas 23 minutos e 169 km de onde estavam – não dava. Outro problema era que Jakarta fica na costa norte da ilha de Java, eles estavam ao sul da ilha e esta é atravessada de leste a oeste por uma cadeia de montanhas que eles teriam que sobrevoar a pelo menos 3500 metros de altitude. Eles já estavam se preparando para fazer um pouso de emergência no mar – algo que nunca tinha sido tentado com um 747 (e nem foi tentado depois tampouco) e tinha pouquíssimas chances de sobrevivência.

Os passageiros já tinham percebido que algo estava errado e começaram a escrever bilhetes de despedida para seus entes queridos. Foi aí que o capitão, Eric Moody, fez um anúncio ao alto-falante que só mesmo um britânico seria capaz de fazer:

Senhoras e senhores, aqui é o seu capitão falando. Temos um pequeno problema. Todos os quatro motores pararam. Estamos fazendo o diabo para botá-los funcionando de novo. Confio que os senhores não estejam muito incomodados.

(Tanta fleuma me fez lembrar da letra de From the Air, da Laurie Anderson – aliás, feita no mesmo ano do voo BA9 – com todo aquele gélido, mas corrosivo humor negro: Aqui é o seu capitão, e estamos todos caindo juntos. E eu disse: oh-oh, hoje vai ser um dia e tanto. Esta é a hora, e este é o registro da hora…)

Sem os motores, a pressurização também falhou e as máscaras de oxigênio caíram, mas a do copiloto Roger Greaves estava quebrada. Isso tornou ainda mais urgente descerem para uma altitude respirável. A 4100 metros, um milagre aconteceu: conseguiram reiniciar o motor nº 4. O primeiro a falhar foi também o primeiro a voltar. Só um motor funcionando não é suficiente para manter um 747 voando, mas já ajuda muito a retardar a descida. Pouco depois, o motor nº 3 voltou – bem quando eles se aproximavam do litoral sul de Java e precisariam subir para escapar das montanhas. Os motores 1 e 2 voltaram logo em seguida e parecia que tudo estava bem, mas ao atingirem a altitude planejada para passar as montanhas, o motor nº 2 falhou de novo, enquanto voltava o efeito do “fogo de Santelmo” – parece que eles estavam cruzando outra nuvem do Galunggung, que o vento levou em outra direção. Mas felizmente, os três motores restantes não voltaram a falhar e, após passadas as montanhas, o comandante iniciou a aproximação para Jakarta – ainda o velho aeroporto Halim Perdanakusuma, hoje usado apenas como base militar e para a aviação regional.

O tempo estava claro em Jakarta, nenhuma nuvenzinha, mas mesmo assim o pouso teve que ser feito todo por instrumentos, porque os pilotos não enxergavam absolutamente nada através do para-brisas. Foi um pouso difícil, porque o equipamento de glide slope de Halim não estava funcionando e, sem enxergarem nada, tiveram que se guiar apenas pelas indicações indiretas do localizer e DME. Mas acabou sendo um pouso tranquilo; no último momento, conseguiram enxergar as luzes da pista por uma fímbria do para-brisas. Porém, o avião não pôde taxiar e teve que parar no meio da pista, porque não havia condições visuais para sair dali por seus próprios meios. O para-brisas parecia ter sido lixado (e fora, mesmo) e com os holofotes do pátio, só o que enxergavam era um clarão branco difuso.

No final, ninguém se feriu e o avião ainda pôde ser recuperado, embora a um custo de dezenas de milhões de dólares. Em Jakarta, os motores 1, 2 e 3 foram trocados, assim como o para-brisas, e os tanques e dutos de combustível esvaziados e limpos, pois estavam cheios de cinzas vulcânicas. Foi só depois desses exames e reparos em Jakarta que a tripulação soube o que ocorrera. Aí o avião pôde voar para Londres, onde o motor nº 4 também foi trocado e foram feitos outros reparos mais extensos. O avião acabou voltando a operar e voou sem mais nenhum incidente até 2004, nada menos que 22 anos depois. Virou sucata em 2009. A tripulação foi condecorada pela rainha e o voo está até hoje no Guinness como o mais longo voo planado num avião não projetado para isso.

A Indonésia criou uma zona de exclusão para evitar novos acidentes, mas por poucos dias. Menos de um mês depois, outro 747, da Singapore Airlines, também encontrou a nuvem do Galunggung e perdeu três motores, mas conseguiu reiniciá-los. Só então a Indonésia tomou jeito e passou a monitorar as cinzas e o tráfego aéreo em função destas.

Sete anos depois, em 15 de dezembro de 1989, um acidente praticamente idêntico aconteceu no Alasca, com um 747-400 da KLM, novinho (menos de seis meses depois de sair da fábrica), com 245 pessoas a bordo. O voo KL867 fazia a rota Amsterdam-Anchorage-Tóquio (Narita) e encontrou nuvens de cinza da erupção do monte Redoubt, um dos mais temperamentais vulcões do Alasca e localizado bem pertinho de Anchorage, onde o avião já estava em procedimento de pouso.

 

A rota do voo KL867

A rota do KL867, na linha transpolar da Europa para o Japão, a mais curta evitando o espaço aéreo da então União Soviética. Hoje o espaço aéreo russo está aberto aos aviões de todos os países (e as taxas de sobrevoo são uma considerável fonte de renda para a Rússia) e a rota pelo Alasca caiu em desuso.

 

Desta vez foi de dia, mas no tempo nublado do inverno do Alasca, o capitão relatou para a torre: “Está só nublado, podem ser cinzas… Está só um pouquinho mais marrom que uma nuvem normal.” Isto mostra que não é tão simples para os pilotos simplesmente evitar uma óbvia nuvem preta à frente – ela pode não ser tão óbvia assim. Mas felizmente, assim como no BA9, abaixo de uma certa altitude o vidro derretido que se depositou dentro dos motores se solidificou, se estilhaçou com a vibração e liberou espaço para o ar circular pela turbina de novo, permitindo religá-la. O avião pousou em segurança, mas a KLM teve um prejuízo de 80 milhões de dólares com os reparos. Porém, o avião está em serviço até hoje, ainda na KLM. Mas é claro que, nos três casos (contando o da Singapore), houve muita sorte e uma tragédia muito grande poderia ter acontecido.

 

Monte Redoubt, Alasca
Localização do Monte Redoubt, de 3180 m de altitude, a cerca de 180 km de Anchorage, a maior cidade do Alasca e local de um importante aeroporto para as rotas transpolares (a cidade está no fundo da baía, no mapa). Todos os vulcões assinalados no mapa são ativos e entram em erupção frequentemente, mas o Redoubt é o mais ativo deles. Ao lado, vê-se uma nuvem de cinzas sendo expelida pelo Redoubt e pode-se ver que as cinzas dele realmente são claras, como observou o piloto do KL867.

O KL867 foi a gota d’água que faltava para tomarem uma providência. Em 1991, foram criados nove Centros de Alerta de Cinzas Vulcânicas (VAACs), que monitoram a atividade de cinzas vulcânicas em quase todo o mundo (com exceção de parte da Sibéria e da Antártida, e de uma área no Pacífico Sul). Estão localizados em Washington, Anchorage, Montreal, Londres, Toulouse, Buenos Aires, Tóquio, Darwin (Austrália) e Wellington (Nova Zelândia). É graças ao trabalho deles que, ainda que ao custo de muitos transtornos, podemos ser avisados e nos proteger dos riscos causados pelas cinzas vulcânicas.

 

Centros de Alerta de Cinzas Vulcânicas
As áreas cobertas pelos nove Centros de Alerta de Cinzas Vulcânicas. Mesmo áreas não vulcânicas estão sujeitas a efeitos de cinzas trazidas pelo vento, e por isto o Brasil também é coberto, em parte pelo centro de Buenos Aires, em parte pelo de Washington.

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